O CAOS

            As recentes manifestações - à parte os lamentáveis excessos, desordens e infiltrações dos que querem o pior, - mostram o lado positivo de os jovens, saindo de uma lamentável inércia, se entusiasmar por uma causa comum, fora deles mesmos, pelo bem da sociedade. Somos-lhes solidários nas justas causas e protestos. Mas é claro que devem sempre discernir sobre os limites da sua inconformidade e saber contra quem e o quê estão se manifestando.
“O direito democrático a manifestações como estas deve ser sempre garantido pelo Estado. De todos espera-se o respeito à paz e à ordem. Nada justifica a violência, a destruição do patrimônio público e privado, o desrespeito e a agressão a pessoas e instituições, o cerceamento à liberdade de ir e vir, de pensar e agir diferente, que devem ser repudiados com veemência. Quando isso ocorre, negam-se os valores inerentes às manifestações, instalando-se uma incoerência corrosiva que leva ao descrédito” (Nota da CNBB, 21/6/2013).
            Segundo análise da imprensa, a mensagem deixada pelas manifestações foi clara: o sentimento contra a política atual. Política deveria ser “uma prudente solicitude pelo bem comum” (João Paulo II, Laborem exercens, 20 e). Por isso, os jovens católicos devem participar da política, em vista do bem comum. E devem usar uma arma mais poderosa do que as passeatas: o voto consciente. Como já disse alguém: “não adianta rugir nas ruas como um leão e nas urnas votar como um jumento!” Se urge uma reforma política, uma reforma dos políticos é mais urgente ainda! Parecendo falar hoje, Eça de Queirós em 1871, escrevia: “Estamos perdidos há muito tempo... O país perdeu a inteligência e a consciência moral... A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido... Ninguém crê na honestidade dos homens públicos... A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia... Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente... A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte, o país está perdido! Algum opositor do atual governo? Não!”.
            É preciso menos intervencionismo estatal e mais iniciativa de cada cidadão e da sociedade civil organizada; menos Estado açambarcador e mais princípio de subsidiariedade; menos protecionismo do Governo e mais competitividade e qualidade da iniciativa particular; menos autoritarismo do Estado e menos monopólio do poder nas mãos de uma casta e mais instituições democráticas sérias e sólidas, como uma imprensa livre, veraz e conscienciosa; menos esmolas estatais e mais oportunidades e incentivo ao trabalho; menos desperdício e mais transparência e correção no uso do dinheiro público; menos impunidade e mais justiça imparcial para todos; e, sobretudo, nada de corrupção. 
            A existência de partidos políticos, oposição e situação, faz parte do regime democrático, bem como o equilíbrio que deve haver entre os três poderes, legislativo, executivo e judiciário. Quando deixa de existir a legítima oposição, com os seus partidos comprados pela situação em espúrias alianças, quando o equilíbrio dos três poderes vacila por influências de interesses inconfessos, aí a democracia começa a perecer, a ditadura velada aparece, o fisiologismo e o populismo imperam e a política, de coisa boa se transforma em ruim, se torna um caos.

            Diz uma anedota que alguns profissionais, um médico, um arquiteto, um advogado e um político, discutiam sobre qual seria a mais antiga profissão. O médico disse que era a sua, pois Deus ao criar Eva, tirada da costela de Adão, fez uma cirurgia. O arquiteto interveio dizendo que antes de Deus criar Adão ele arquitetou o universo. O advogado interpelou dizendo que antes de Deus criar o universo, ele pôs ordem no caos, o que é uma função de advogado. E o político, com um sorriso maroto de vitória, perguntou: e quem fez o caos?! 

A IDEOLOGIA DA CONSPIRAÇÃO

Como bom filho de Santo Inácio, o Papa Francisco, aludindo a comunidades, analisa bem como o demônio, bom estrategista, sabe nos tentar e nos enganar com aparências de verdade ou meias-verdades, o que pode se aplicar ao comportamento humano em geral.
            “A tentação do individualismo, que, crescendo, nos conduz a parcialidades... baseia-se sempre em uma verdade (que pode ser real ou parcial ou aparente, ou uma falácia). Costuma ser uma razão que justifica e tranquiliza ao mesmo tempo. E essa razão tem raiz no espírito de suspeita e desconfiança. Nem sempre o demônio tenta com uma mentira. Na base de uma tentação, pode existir uma verdade, mas vivida no mau espírito... ‘Vim a pensar como Nosso Senhor não deve ter por bem reformar algumas coisas da Igreja segundo o modo dos hereges; porque eles, assim como também os demônios, em muitas coisas dizem a verdade, mas não a dizem com o Espírito de verdade, que é o Espírito Santo’ (Beato Fabro). Aqui se baseia, em grande parte, a estrutura da ideologia. Aparentemente, a ideologia parece ser fruto de uma verdade, de uma opinião; porém, na realidade, é fruto da vontade, do mau espírito. Por isso, uma ideologia deve ser julgada sempre não por seu conteúdo, mas pelo espírito que a sustenta, que não é necessariamente o Espírito da verdade”
            “As suposições são como aqueles que pretendem prever o futuro: são nada mais que tentação. Ali Deus não está, porque Ele é Senhor do tempo real, do passado constatável e do presente discernível. Quanto ao futuro, é Senhor da Promessa, que pede de nós confiança e abandono...”.
            “É o próprio demônio quem semeia a suspeita no coração para dividir. A fenomenologia é inversa à da Encarnação do Verbo: o demônio busca dividir, por meio da suspeita, para confundir depois; o Senhor, no entanto, apresenta-se sempre Deus e Homem, sem confusão nem divisão. Ao semear as suspeitas, o demônio procura convencer com falácias ou com meias verdades, a fim de resguardar o coração em convicções egoístas que levam a um mundo fechado a toda objetividade (cf. Exercícios Espirituais e regra para discernimento). A suspeita, semeada pelo demônio, configura uma regra distorcida no coração, que distorce toda a realidade... Já não se trata de tal ou qual ideia, e sim de toda uma hermenêutica: qualquer coisa que aconteça é interpretada de forma distorcida, devido à adesão a essa regra distorcida”.

            “A teoria do complô... é uma sedução primária que favorece o tipo de almas que, no fundo, sente falta de esquemas maniqueístas de bom-mau (e costuma se situar no partido dos bons). A falta de contato com uma objetivação real vai amuralhando tais almas em certa ideologia defensiva. Elas trocam a doutrina pela ideologia, a peregrinação paciente dos filhos de Deus pelo vitimismo do complô que os outros fazem contra elas. Acabam enroladas em palavras que aprisionam, segundo o dito que diz que as palavras que nascem da mente são um muro e as que nascem do coração são uma ponte” (J. M. Bergoglio, S.J., Sobre a acusação de si mesmo). 

O PECADO DA FOFOCA

São Tiago apóstolo nos adverte: “Se alguém julga ser religioso, mas não refreia a sua língua, engana-se a si mesmo: a sua religiosidade é vazia... Todos nós tropeçamos em muitas coisas. Aquele que não peca no uso da língua é um homem perfeito” (Tg 1, 26; 3, 2).
            Na audiência geral de 22 de maio último, na qual estive presente, Sua Santidade o Papa Francisco ensinou que em Babel tiveram início a dispersão e a confusão das línguas, fruto da soberba e orgulho do homem;  o efeito, porém, da obra do Espírito Santo é a unidade e a comunhão: “Em Pentecostes, estas divisões são superadas. Já não há orgulho em relação a Deus, nem fechamento de uns aos outros, mas abertura a Deus, saída para anunciar a sua Palavra: uma língua nova, do amor, que o Espírito Santo derrama nos corações (cf.Rm 5, 5)... A língua do Espírito, do Evangelho, é a língua da comunhão, que convida a superar fechamentos e indiferenças, divisões e oposições. Cada um deve se perguntar: como me deixo guiar pelo Espírito Santo, de modo que a minha vida e o meu testemunho de fé seja de unidade e comunhão? Levo a palavra de reconciliação e amor, que é o Evangelho, aos ambientes onde vivo? Às vezes parece repetir-se hoje o que aconteceu em Babel: divisões, incapacidade de compreensão, rivalidades, inveja e egoísmo. Que faço na minha vida? Crio unidade ao meu redor? Ou divido com mexericos, críticas e inveja. O que faço?”.
            É uma preocupação recorrente na pregação do nosso Papa, desde os tempos de Cardeal: o vício de acusar, apontar e condenar com a língua, grande fator de divisão. Em espanhol, é cotillear; em bom português, fofocar. Ele citava Santo Agostinho: “Há homens de juízo temerário, detratores, maldizentes, murmuradores, suspeitosos do que não veem, procurando acusar do que nem mesmo suspeitam” (Sermão 47). E continuava: “O falatório nos leva a nos concentramos nas faltas e defeitos dos outros; desta maneira, acreditamos nos sentir melhores. A oração do publicano no Templo ilustra essa realidade (Lc 18, 11-12), e Jesus já nos havia advertido sobre ver o cisco no olho do outro, ignorando a trave em nosso próprio”.
            “Falar mal dos outros é um mal para a Igreja toda, pois não fica ali, no mero comentário, passa para a agressão (pelo menos no coração). Santo Agostinho chama o murmurador de ‘homem sem remédio’: ‘os homens sem remédio são aqueles que deixam de cuidar de seus próprios pecados para reparar nos dos outros. Não buscam o que se há de corrigir, e sim o que podem criticar. E, ao não poder escusar a si mesmos, estão sempre dispostos a acusar os outros’ (Sermão 19)”.

            “Não é raro encontrar nas comunidades grupos que lutam para impor a hegemonia de seu pensamento e de sua preferência. Isso costuma acontecer quando a caritativa abertura ao próximo é suprida por ideias de cada um. Já não se defende o todo da família, e sim a parte que me toca. Já não se adere à unidade que vai configurando o corpo de Cristo, e sim ao conflito que divide, parcializa, debilita...” (Jorge Mario Bergoglio, S.J., Sobre a acusação de si mesmo). 

O PAPA PECADOR

Houve quem ficasse surpreso quando, na audiência geral de 29 de maio passado, o Papa Francisco declarou que era pecador: “A Igreja é a grande família dos filhos de Deus. Sem dúvida, ela também tem aspectos humanos; naqueles que a compõem, Pastores e fiéis, existem defeitos, imperfeições e pecados; até o Papa os tem, e tem tantos, mas é bom saber que quando nos damos conta que somos pecadores, encontramos a misericórdia de Deus, que perdoa sempre”.
            O Papa Francisco quer nos ensinar a humildade, que começa com a confissão de que somos pecadores. Ele é o vigário de Jesus Cristo na terra. Jesus, sendo Deus santíssimo, tomou sobre si os nossos pecados: “Aquele que não cometeu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus (2 Cor 5, 21). Jesus, inocente e puro, quis passar por pecador. Foi assim que ele juntou-se ao povo para receber o batismo de penitência dado por João no rio Jordão. Nós, ao invés, sendo pecadores, queremos passar por santos. E ficamos indignados quando somos tratados como pecadores! “Se dissermos que não temos pecado, estamos enganando a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1, 8).
            Por isso a Igreja, mãe sábia, na sua sagrada Liturgia, nos ensina sempre a humildade: “Eu, pecador, me confesso... porque pequei muitas vezes..., por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa”; com muitas súplicas ao perdão e à misericórdia de Deus: “não olheis os nossos pecados, mas a fé que anima a vossa Igreja”.
            Subliminarmente, o Papa também quer combater o carreirismo na própria Igreja, o gosto de aparecer, o desejo de nos substituirmos a Jesus Cristo, o querer, na Liturgia, por exemplo, se suplantar ao próprio Cristo, fazendo-nos os protagonistas da ação sagrada.

            “Sede discípulos meus, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vós” (Mt 11, 29). A humildade é fonte de paz, de fraternidade e união. É o oposto da hipocrisia.  E para ser humilde é preciso ser forte, corajoso e valente. É a temática jesuítica, muito cara ao nosso Papa: “Acusar a si mesmo implica uma valentia pouco comum para abrir a porta a coisas desconhecidas e deixar que os outros vejam além de minha aparência. É renunciar à maquiagem, para que se manifeste a verdade. Na base do acusar a si mesmo, que é um meio, está a opção fundamental pelo anti-individualismo, pelo espírito de família e de Igreja que nos conduz a nos assumirmos, como bons filhos e bons irmãos, para mais tarde podermos vir a ser bons pais. Acusar a si mesmo implica uma postura basicamente comunitária...” E como ele falou na última audiência, o reconhecermo-nos pecadores atrai o perdão de Deus: “Quem acusa a si mesmo abre espaço para a misericórdia de Deus; é como o publicano que não ousa levantar seus olhos (cf. Lc 18, 13). Quem sabe acusar a si mesmo é um homem que sempre se aproximará bem dos outros, como o bom samaritano, e , nessa aproximação, o próprio Cristo realizará o acesso ao irmão” (Jorge Mario Bergoglio, S.J., Sobre a acusação de si mesmo).