A CRUZ, A FOICE E O MARTELO

     Em sua visita à Bolívia, no começo deste mês, o Papa Francisco recebeu do presidente Evo Morales uma cruz em forma de foice e martelo, símbolo do comunismo, tendo nela Jesus Crucificado, símbolo do cristianismo. Era uma réplica da escultura criada pelo jesuíta espanhol Padre Luis Espinal, ligado à Teologia da Libertação, como forma de diálogo ou mesmo simbiose entre o comunismo e o catolicismo.
     Ao ver o rosto constrangido do Papa, lembrei-me do constrangimento de Dom Antônio Santos Cabral, arcebispo de Belo Horizonte, ao ser convidado por Juscelino Kubicheck para benzer a Igreja da Pampulha, em forma de foice e martelo. O arcebispo recusou, dizendo que a obra modernista de Oscar Niemeyer ia de encontro ao aceitável pela Igreja.
     Deixando de lado a análise da impertinência do insólito presente de Evo Morales, consideremos apenas o significado de tal crucifixo em forma de foice e martelo.
     Na entrevista no avião, o Papa explicou que o Pe. Luis Espinal pertencia à linha da Teologia da Libertação que utilizava a análise marxista da realidade. Segundo o Papa, Espinal era um entusiasta dessa análise da realidade marxista e também da teologia usando o marxismo. O Papa lembrou que, nesse tempo, o Superior Geral da Companhia de Jesus mandou uma carta a toda a Companhia sobre a análise marxista da teologia, dizendo que isso não podia, não era justo, pois são coisas diferentes. E o Papa Bergoglio lembra os documentos da Congregação para a Doutrina da Fé sobre o assunto (CDF Libertatis nuntius e Libertatis conscientia).
     Alguns tentaram justificar a amálgama entre marxismo e cristianismo, alegando que se poderia “batizar Marx” assim como Santo Tomás de Aquino “batizou” Aristóteles. Mas esses se esquecem de que Aristóteles era pagão, tinha uma filosofia natural, mas não era anticristão, ao passo que Marx, sua filosofia, sociologia, materialismo dialético, negação da propriedade, etc. são visceralmente antinaturais e anticristãos. Impossível ser batizado! Coisas irreconciliáveis!
     O documento citado pelo Papa Francisco relembra a advertência do Papa Paulo VI: “Seria ilusório e perigoso o esquecimento do íntimo vínculo que os une de forma radical, aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista deixando de perceber o tipo de sociedade totalitária que conduz esse processo” (Octogesima adveniens, 34).
    “Essa concepção totalizante (de Marx) impõe sua lógica e leva ‘as teologias da libertação’ a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã do homem... A nova hermenêutica, inserida nas ‘teologias da libertação’ conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura... A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças. Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele conduziu...” (Libertatis nuntius).

AUTORIDADE DA ENCÍCLICA

               A última encíclica do Papa Francisco, “Laudato si”, sobre o cuidado da casa comum, contém importantes ensinamentos para o mundo de hoje. Alguns, porém, poderiam contestar, dizendo que não se trata de um dogma de fé e seus ensinamentos são discutíveis.
                Há diversos graus de autoridade nos ensinamentos da Igreja. No primeiro grau, estão as verdades divinamente reveladas, ensinadas de forma solene pelo Magistério infalível, que exigem de nós assentimento pleno e irrevogável de fé. No segundo grau, estão as verdades relacionadas com o campo dogmático ou moral, necessárias para guardar e expor o depósito da fé, propostas de modo definitivo pela Igreja, a que devemos também um assentimento pleno e irrevogável, baseado na fé da assistência do Espírito Santo ao Magistério. No terceiro grau, estão os ensinamentos que o Romano Pontífice ou o Colégio Episcopal propõem quando exercem o magistério autêntico, ainda que não entendam proclamá-los com um ato definitivo.
                É nesse terceiro grau que se enquadra a Encíclica “Laudato si”, do Papa Francisco.
            A esses ensinamentos do terceiro grau do Magistério, ou seja, do Magistério simplesmente autêntico, ainda que não tenham sido definidos com um juízo solene nem propostos como definitivos pelo Magistério ordinário e universal, “é exigida uma religiosa submissão da vontade e da inteligência. Esta não pode ser puramente exterior e disciplinar (silêncio respeitoso), mas deve colocar-se na lógica e sob o estímulo da obediência da fé” (Donum Veritatis, 23). Infelizmente há uma pressuposta equação falsa em voga: ensinamento magisterial não definitivo é igual a não obrigatório.
            “Porque o ensinamento não infalível da Igreja, embora não de maneira absoluta, é também assistido pelo Espírito Santo. Muito se enganaria, pois, quem cuidasse que ele nos deixa inteiramente livres de assentir ou de discordar. Não obrigar sob pena de heresia, está longe de equivaler a não obrigar de todo... Nem basta acolher este ensinamento com um silêncio respeitoso; impõe-se uma adesão intelectual” (Penido – O Mistério da Igreja, VII).
 “Nem se deve crer que os ensinamentos das encíclicas não exijam, por si, assentimento, sob alegação de que os sumos pontífices não exercem nelas o supremo poder de seu magistério. Entretanto, tais ensinamentos provêm do magistério ordinário, para o qual valem também aquelas palavras: ‘Quem vos ouve a mim ouve’ (Lc 10,16)” (Pio XII, Humani Generis, 20)
“Com relação ao ensinamento do Magistério em matéria em si não irreformável, a vontade leal de se submeter deve ser a regra... Neste âmbito de intervenções de tipo prudencial, aconteceu que alguns documentos magisteriais não fossem isentos de carências. Os Pastores nem sempre colheram prontamente todos os aspectos ou toda a complexidade de uma questão. Mas seria contrário à verdade se, a partir de alguns casos determinados, se inferisse que o Magistério da Igreja possa enganar-se habitualmente nos seus juízos prudenciais, ou não goze da assistência divina no exercício integral da sua missão” (Donum Veritatis 24/5/1990, 24).

NOSSA SENHORA DO CARMO

       Celebraremos a festa de Nossa Senhora do Monte Carmelo ou do Carmo, devoção antiquíssima na Igreja, muito difundida pelo uso do Escapulário em sua honra.
       Quase na divisa com o Líbano, o monte Carmelo, com 600 metros de altitude, situa-se na terra de Israel. “Carmo”, em hebraico, significa “vinha” e “El” significa “Senhor”, donde Carmelo significa a vinha do Senhor. Ali se refugiou o profeta Elias, que lá realizou grandes prodígios, e depois o seu sucessor, Eliseu. Eles reuniram no monte Carmelo os seus discípulos e com eles viviam em ermidas. Na pequena nuvem portadora da chuva após a grande seca, Elias viu simbolicamente Maria, a futura mãe do Messias esperado.
        Assim, Maria foi venerada profeticamente por esses eremitas e, depois da vinda de Cristo, por seus sucessores cristãos, como Nossa Senhora do Monte Carmelo.
     No século XII, os muçulmanos conquistaram a Terra Santa e começaram a perseguir os cristãos, entre eles os eremitas do Monte Carmelo, muitos dos quais fugiram para a Europa. No ano 1241, o Barão de Grey da Inglaterra retornava das Cruzadas com os exércitos cristãos, convocados para defender e proteger contra os muçulmanos os peregrinos dos Lugares Santos, e trouxe consigo um grupo de religiosos do Monte Carmelo, doando-lhes uma casa no povoado de Aylesford. Juntou-se a eles um eremita chamado Simão Stock, inglês de família ilustre do condado de Kent. De tal modo se distinguiu na vida religiosa, que os Carmelitas o elegeram como Superior Geral da Ordem, que já se espalhara pela Europa.
    No dia 16 de julho de 1251, no seu convento de Cambridge, na Inglaterra, rezava insistentemente o santo para que Nossa Senhora lhe desse um sinal do seu maternal carinho para com a Ordem do Carmo, por ela tão amada, mas então muito perseguida. A Virgem Santíssima ouviu essas preces fervorosas de São Simão Stock, dando-lhe, como prova do seu carinho e de seu amor por aquela Ordem, o Escapulário marrom, como veste de proteção, fazendo-lhe a célebre e consoladora promessa: “Recebe, meu filho, este Escapulário da tua Ordem, que será o penhor do privilégio que eu alcancei para ti e para todos os filhos do Carmo. Todo aquele que morrer com este Escapulário será preservado do fogo eterno. É, pois, um sinal de salvação, uma defesa nos perigos e um penhor da minha especial proteção”. O Papa Pio XII, na carta dirigida a todos os carmelitas, em 11 de fevereiro de 1950, escreveu que entre as manifestações da devoção à Santíssima Virgem “devemos colocar em primeiro lugar a devoção do Escapulário de Nossa Senhora do Carmo que, pela sua simplicidade, ao alcance de todos, e pelos abundantes frutos de santificação, se encontra extensamente divulgada entre os fiéis cristãos”. Mas faz uma advertência sobre sua eficácia, para que não seja usado como superstição: “O sagrado Escapulário, como veste mariana, é penhor e sinal da proteção de Deus; mas não julgue quem o usar poder conseguir a vida eterna, abandonando-se à indolência e à preguiça espiritual”. 

LOUVADO SEJAS...

          “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”. Assim se exprimia São Francisco de Assis, no seu célebre “Cântico do Irmão Sol” ou “Cântico das criaturas”, no qual expressa o seu louvor a Deus através de suas obras. Inspirado nesse cântico, o Papa Francisco escreveu sua encíclica “Laudato si”, sobre o zelo que devemos ter com as criaturas que Deus nos deu, sobre o cuidado da casa comum, “a nossa irmã, a terra”.
            Numa posição de equilíbrio entre os ambientalistas e ecologistas com visão apenas naturalista da questão e os gananciosos pelo dinheiro que visam apenas o lucro sem se preocuparem com os danos ambientais, ambos muitas vezes esquecidos da centralidade e dignidade da pessoa humana, o Papa adota uma correta posição teológica e antropológica diante do problema da natureza criada por Deus e dada ao homem, rei da criação. O Papa nos lembra que “esta irmã clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou” (n. 2).
“Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência, porque em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza” (n. 117).
            Desta encíclica, cuja leitura integral recomendo a todos, ressalto alguns pontos significativos, como, por exemplo, quando o Papa condena os defensores da contracepção e do controle artificial da população: “Em vez de resolver os problemas dos pobres e pensar num mundo diferente, alguns limitam-se a propor uma redução da natalidade. Não faltam pressões internacionais sobre os países em vias de desenvolvimento, que condicionam as ajudas econômicas a determinadas políticas de ‘saúde reprodutiva’” (n. 50).
            O Papa defende, sobretudo, a vida humana: “Uma vez que tudo está relacionado, também não é compatível a defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá proteção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incômodos e dificuldades” (n. 120). “Além disso, é preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se faz experiências com embriões humanos vivos. Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é independente do seu grau de desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática. Como vimos neste capítulo, a técnica separada da ética dificilmente será capaz de autolimitar o seu poder” (n. 136).